O que está acontecendo no Peru?
Domingo, 15 de novembro de 2020 marcou um antes e um depois na história do Peru. Após vários dias de protestos que começaram na quinta-feira, 12 de novembro, o confronto entre policiais e manifestantes deixou o trágico resultado de dois jovens mortos.
Mas o que causou as manifestações? O gatilho foi a remoção pelo Congresso de Martín Vizcarra da presidência do país na segunda-feira, 9 de novembro, com 105 votos a favor, 19 contra e 4 abstenções (são necessários 87 votos dos 130 legisladores). Isso, faltando alguns meses para as eleições gerais (para presidente e deputados) marcadas para abril de 2021.
O exmandatário tinha uma alta aprovação da população (de mais de 50%), mas tinha o Poder Legislativo contra ele.
Devemos lembrar que Vizcarra foi vice-presidente de Pedro Pablo Kuczynski, que renunciou em março de 2018 (após apenas um ano e nove meses no cargo) em meio a acusações de corrupção ligadas ao caso Odebrecht.
Vizcarra assumiu o comando do país para substituir Kuczynski. Desde então, enfrentou um Legislativo adverso. As idas e vindas entre os dois poderes do Estado terminaram com a dissolução do Congresso por Vizcarra em setembro de 2019. Isso, depois que o Parlamento se recusou a suspender uma nomeação questionada de novos membros do Tribunal Constitucional (o órgão máximo do Poder Judiciário no Peru) .
Posteriormente, os peruanos elegeram um novo Congresso em janeiro deste ano, que também não tinha maioria oficial (Vizcarra não apresentou uma lista ao Parlamento) e era altamente fragmentado, com nove bancadas parlamentares.
A demissão de Vizcarra ocorreu em decorrência de denúncias de corrupção por propinas que teriam sido cobradas quando ocupava o cargo de presidente regional de Moquegua, departamento do sul do país.
O motivo pelo qual a demissão foi proposta foi a vacância por incapacidade moral, indicada na Constituição, mas tal causa pode ser interpretada de várias maneiras.
Assim, após apresentar uma moção de vacância pela segunda vez (houve outra em setembro deste ano que não alcançou as votações necessárias), o Congresso desocupou Vizcarra, que aceitou a decisão dos legisladores e aquiesceu às investigações que estão em sua contra e que ainda tramitam no Judiciário.
Após a demissão de Vizcarra, por não ter vice-presidente (o segundo vice-presidente de Kuczynski renunciou), assumiu a presidência o presidente do Congresso, Manuel Merino, que foi rejeitado pela maioria da opinião pública.
As manifestações começaram na quinta-feira, 12 de novembro, em diferentes partes do país. Muitas pessoas que não saíram de suas casas se juntaram aos protestos batendo suas panelas em suas janelas ou telhados.
A indignação aumentou e, em uma série de fatos ainda não esclarecidos, a violência transbordou na noite de sábado no centro da capital, Lima, nos arredores do Congresso. As redes sociais foram inundadas com imagens e vídeos denunciando abusos policiais com gás lacrimogêneo e outras armas que, segundo a polícia, não são letais.
No entanto, na madrugada de domingo, 15 de novembro, foi confirmada a morte de dois jovens, Jack Bryan Pintado Sánchez e Jordan Inti Sotelo Camargo, de apenas 22 e 24 anos. Merino teve que renunciar ao seu cargo ao meio-dia daquele mesmo dia.
O dia de protestos também deixou mais de uma dezena de feridos e desaparecidos. Estes últimos já foram localizados nas próximas horas e dias e espera-se que em breve prestem o seu testemunho do que teriam sido detenções ilegais por parte das forças policiais.
Enquanto isso, o Congresso teve que se reunir em caráter de urgência no domingo, dia 15, e, após duas tentativas de eleger um novo presidente, nomeou Francisco Sagasti como novo presidente do Congresso na tarde de segunda-feira, 16 de novembro, sendo ele assumir a presidência da República substituindo Merino. Ele é um político centrista com uma carreira mais acadêmica.
Todos esses fatos refletem a fragilidade das instituições peruanas. O Congresso tem o poder de remover o presidente em exercício, apresentando uma moção de vacância por causas que não estão bem definidas. Isso deve ser esclarecido pelo Tribunal Constitucional. No entanto, a referida instituição decidiu em 19 de novembro, com quatro votos a favor e três contra, não se pronunciar sobre o assunto, alegando “subtração da matéria”, ou seja, que o tema em discussão já havia encerrado porque a vacância presidencial já havia havia especificado.
O Tribunal Constitucional respondeu em 19 de novembro a um pedido pendente, chamado de ação de competência, que o ex-presidente Vizcarra havia apresentado devido à primeira tentativa de vacância em setembro deste ano.
Perante a incerteza, uma forma alternativa de resolver o problema da vacância por incapacidade moral é o Parlamento modificá-la na Constituição, eliminando a referida causa ou alterando-a para uma mais objetiva.
Por outro lado, o presidente também possui ferramentas um tanto polêmicas para enfrentar o Legislativo, podendo dissolver o Parlamento se não der ao gabinete de ministros um voto de confiança duas vezes seguidas.
Em outras palavras, as regras do jogo para o funcionamento dos poderes do Estado geram instabilidade política. Soma-se a isso a perda de prestígio da classe dominante e o descontentamento da população por não se sentir representada porque, vale esclarecer, os protestos não eram para reintegrar Vizcarra, mas para expressar indignação com a atuação dos parlamentares e com o que foi considerada usurpação ilegítima do Poder Executivo por Merino.
Também não devemos deixar de lado que haveria interesse por parte de alguns legisladores em frear certas reformas, por exemplo, a educacional. Alguns parlamentares são acusados de representar os interesses de universidades privadas que estão tendo dificuldades em atingir a qualidade mínima que as autoridades exigem para lhes conceder as respectivas licenças de funcionamento.
Também é necessário refletir sobre um fator chave nos trágicos acontecimentos do fim de semana, que foi a atuação das forças de segurança que teriam atuado de forma desproporcional, e que nos leva a considerar a necessidade de melhorar a formação dos policiais. Os problemas de abuso policial, ou seja, não ocorrem apenas no Peru, mas em muitos outros países do mundo.
Olhando para o futuro, o governo de transição de Sagasti agora tem a tarefa não apenas de controlar a pandemia de coronavírus, em um dos países mais atingidos pela crise da saúde, mas também de garantir eleições gerais limpas em abril de 2021. Espero que seja a oportunidade propor o fortalecimento das instituições peruanas.
Fotografia: André Suárez.